terça-feira, 20 de setembro de 2011

Vida Roubada


Sabe aquele guarda-chuva que você perdeu? Ele agora é meu. As pessoas acham poético roubar rosas. Roubar rosas de verdade requer o seu sangue. Sangue que brota do encontro com espinhos, até que se quebre o talo e se cheire ou aprecie a rosa roubada em toda sua exuberância de coisa que você decretou o fim. Roubar rosas é abreviar a vida, é uma pena de morte. Eu roubo guarda-chuvas, eu os retiro da morte e os recomponho. Tento sentir as caracteristicas anteriores do seu antigo dono e em seguida eu os recrio, eu retiro o decreto da morte daquela peça que tão bem serviu ao seu mestre. Há muito mais poesia em mim do que em quem rouba coisas vivas. Enquanto meus guarda-chuvas crescem, suas rosas ficam pálidas, amareladas e apodrecem pétala por pétala. Ônibus, metrô, meio da rua. Eles estão lá me chamando. Mais um dia em que eu estava solitária olhando as janelas do ônibus engolir os postes acesos da noite com velocidade quando lá estava. Esqueceram um guarda-chuva no banco. Eu o toquei. O senti em minhas mãos, transmitia a vida de alguém...pulsava de tanta vida. Eu quis ser outra pessoa e esse desejo me foi concedido. Desci do ônibus e não tardou a cair aquela chuva que faz o Sol ser eclipsado. Com delicadeza, porque não se invade a intimidade de um estranho, chega-se devagar, eu o abri. Havia uma chuva externa e uma interna que me ensopou até a alma, eram gotas avermelhadas, que tingiram meus lábios de rubro intenso, coraram o meu rosto e meus olhos inexpressivos ganharam um quê felino. Meus cabelos tristes tranformaram-se na moldura perfeita do esplendor de minha súbita beleza. Eu deixei de ser invisível, eu apareci. Homens me olhavam, eu tive medo pois senti um calor na semente de minha alma. Ele estava de capa de chuva e com grandes passadas tentava me alcançar. Meu insosso pisar, transformou-se em exuberantes passadas de mulher decidida que anda de salto com desenvoltura. Quem terá sido a dona dessa guarda-chuva? Havia uma tal falta de pudor em mim que quando ele se aproximou o suficiente eu me virei como atacam as feras e o agarrei pelo colarinho. De onde veio essa coragem? Algumas pessoas precisam beber, eu precisava daquele guarda-chuva. Ele revelou o seu nome: Hormindo. E ansiava pelo meu. Mas eu não sabia e só pude responder. Nome? Pra quê nome? Ele me arrastou com lascívia para quatro paredes privadas. Eu não sentia medo. Mas pra que aquilo tudo? Não havia amor, havia animalidade. O amor, eu idealizo, como uma fogueira acesa que afasta os perigos animais da floresta da vida, o calor do amor transforma o ser assustado em gente confiante e completa. O vazio do desamor ainda existia. Naquela brutalidade sem proposito eu apertei os olhos e subitamente fui salva. Fui salva de ser aquela pessoa luxuriosa e sem amor. Com tom afetado, uma mulher de má vida esbarrou em mim no banco e proferiu que estava agradecido de eu ter encontrado seu guarda-chuva, pois já estava preparada para deixar a condução. Eu percebi que nem do banco havia descido, apenas segurava aquele guarda-chuva vermelho com as mãos. Eu o entreguei e vi que toda aquela exuberante pintura não passava de uma máscara para preencher o desamor de sua vida. Quis dizer que a compreendia, mas a minha mudez não permitiu. Ela alisou os cabelos afetadamente com os dedos e disse que precisava descer. Olhei espantada para seu corpo coberto de pele nua e adornada de finos tecidos a guisa de roupas. Ela voltou mais uma vez e disse que estava agradecido por tê-lo guardado, pois se aquele guarda-chuva falasse contaria tantas histórias... creio eu que tão sujas histórias... Descemos na mesma parada. Eu segui sobre forte chuva em direção oposta, cruzamos a esquina. Uma forte rajada de vento soprou e foi assim que o guarda-chuva me escolheu. Ele saltou de sua antiga dona na carona do vento e veio distante, girando graciosamente. Como uma dança ensaiada eu fechei o meu guarda-chuva preto e ergui o braço enquanto o vermelho pousou em minha mão. Ele era meu. Hormindo seria meu. Eu empunhava o meu troféu vermelho e com ele eu teria algo a aprender. A lição de correr os riscos me esperavam, Hormindo me esperava. E como estava aberto, a chuva interna voltou a cair e eu deixei Hordália para trás e absorvi novamente a exuberância da "má vida" que escorreu sobre mim, com o vermelho da luxúria.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A Decisão

 
As pessoas que estão sozinhas nem sempre têm pleno conhecimento de sua solidão. Eu enquanto solitária nem imaginava a profundidade a que estou submergida. Eis que ontem eu estava distraída enredada em pensamentos que nem sei se eram meus, tamanha a minha apatia, quando percebi a verdade ser jogada no meu rosto. Sentou-se na minha frente um homem alvo de cabelos muito pretos, corpo enxuto e uma expressão morna. O seu telefone tocou. Ele atendeu com uma voz feita para declarações de amor. Pisquei espantada como se pudesse enxergar até o invisível daquele homem. Ele deu um meio sorriso e abriu bem os olhos, olhando o céu. Da distância em que eu estava foi suficiente. Existe uma cor de olhos que é mais rara e mais bonita do que todo o esforço que um olho azul pode fazer para ser belo, essa mesma cor desbanca todas as combinações entre o verde e o amarelado. É quando a cor castanha chega a sua perfeição. Era um mel dourado derramado nos seus olhos. A cor mais bela que uma íris, essa tela viva pintada pela nossa força interior, pode um dia alcançar. Vejam bem, não era o dourado ou os amarelos que os animais podem ter, qualquer gato, onça e pinguim tem olhos amarelos... era feito de mel puro, uma cor sólida e brilhante. Essa visão abalou todo o meu castelo, as muralhas desabaram. Cheguei até a pensar que ser solitária é uma decisão. O solitário escolhe a cada minuto ser sozinho, basta uma ação para mudar essa fatalidade ilusória da vida. Um calor morno foi sentido bem dentro onde suponho deva existir o meu coração. Mas como uma taça ou um prato que se quebra com barulho e todos silenciam para prolongar o espanto, o que havia dentro de mim rachou-se novamente. Havia uma enorme aliança dourada em seus dedos e uma moça agradável beijou-lhe a testa e colocou-lhe a filhinha no colo. Olhar a vida dos outros só me faz sentir mais vazia. Olhei para os lados, porque sustentar o olhar dói muito. Levantei-me e ainda vi outros casais felizes que me insultavam. Então entendi, que o solitário, para não sofrer acaba ficando apático e escolhe sim, ser sozinho a todo instante. E quando se fica apático a mente é inundada por pensamentos que não se sabe nem de onde vieram e estes passam a ser sua companhia. Então, esqueço a profundidade da minha solidão, mas vez ou outra eu caio de novo no abismo. Andei em direção a praia, será que o mar é mais profundo que o vazio da minha vida? Andei a esmo e fui esquecendo, esquecendo a dor de momentos atrás. Mas na hora de voltar tive outro choque de pura consciência. A certeza de estar solitário é percorrer de volta o trajeto na praia e ver que só existem as suas próprias pegadas.
(Hordália das Dores Ferreira)