sábado, 3 de setembro de 2011

Eu te...

Minha inigualável coleção de guarda-chuvas chamava-me com choro, seja meu ou seja do céu. Às vezes eu escolhia aquele que mais me atraia ou que me lembrava de alguma história muito triste. Abria-o em meio a minha apertada sala de estar e punha-me debaixo para chorar por todas as minha mágoas. Mas hoje eu precisava sair. Escolhi um feito por encomenda: escuro acetinado com um ônibus em relevo cinzento cuja logomarca da empresa era um coração partido. O cabo era de um falso marfim e o segurava com desafio. A ponta era aguda e comprida como um espeto. Fazia Sol, mas bastava por o pé na rua e nuvens cinzentas faziam os carros ligar os faróis mesmo não sendo noite. Começou uma chuva irritantemente fina. As pessoas esbarravam em mim, nunca entendi o por quê. Seria eu invisível, insignificante, sem relevância, sem direito a momentos únicos e especiais? Mas tive o meu momento especial e o contarei agora. Quando jovem eu sempre fui curiosa e quis saber o que significava esse meu nome tão diferente. O "H" eu já adivinhara há muito. É letra muda como mudo é o meu coração sofrido. Cheguei à biblioteca pública da cidade de Três Corações. Ninguém notou a minha chegada. Escolhi os livros em silêncio mortal e descobri pasma que Ordália significa Veredito Divino. Eu era um veredito divino mudo? Eu era condenada ao silêncio eterno? Pior ainda, descobri que funcionava mais ou menos assim: o sujeito cometia um crime, e nos tempos antigos, na ausência de tribunais, testemunhas, réus e juízes, o veredito ficava por conta de Deus. Submetiam o acusado a provas dolororas, mutilantes ou mortais, partindo da premissa de que se fossem inocentes o Todo Poderoso interviria e o cidadão sairia ileso ou com nenhuma marca das chagas. Usavam tudo, ferro em brasa, óleo fervente, imersões em água, líquidos corrosivos e venenos. Eram ordálias de fogo e de água. Mas eu nem precisei ir muito longe, fiquei longo tempo absorta entendendo o meu destino... Hordália das Dores... Fiquei tanto tempo pensativa que a biblioteca fechou e me esqueceram la dentro! Esqueceram-me! Eu Era Muda, sem som e sem presença como o meu "H"! Corri para a porta mas já era tarde demais. Apagaram as luzes e eu me encostei num cantinho e fiquei debaixo do meu guarda-chuvinha como se fosse um pequeno abrigo. Dormi. Bem cedo alguém me achou. Sonolenta nem acreditei naquele rapaz. Ele me vira! Enfim alguém era capaz de me ver. Voltei para casa saltitante, um rapaz me vira. Até que, saída do nada para azedar a minha pequena alegria, uma cigana esfomeada, bruscamente agarrou minha mão para ler. Ergueu os olhos penalisada e disse: "Terás muita sorte no jogo" afastei-me da cigana suja e corri, atravessando a rua atabalhoadamente quando ouvi o rapaz gritar: Espere, Espere! Ao virar-me ele estava diante de mim, nós dois na rua, ele dizia: Eu, eu eu eueueu... ele era gago. Mas aquele momento foi especial, enfim os meu sonhos romanticos se concretizariam e um rapaz se apaixonaria por mim a primeira vista, será que ele estava dizendo Eu te amo? Passou para eu te te teeeeee, respirava e teeee. Enfim era o momento, permiti a mim mesma a languidez de fechar os olhos lentamente para ouvir comovida que alguém me amava pela primeira vez e até que lá foi: eu te FOOMM FOOMMM. Um ônibus buzinou e como estávamos na rua PEI! O rapaz não estava mais lá, não pertencia mais a este mundo. Ao abrir os olhos dei de cara com um coração partido pintado na lataria do veículo. Afastei-me para olhar debaixo da roda e só vi o meu guarda-chuvinha. Ele estava devolvendo o guarda-chuva esquecido, será que ele queria dizer: "Eu Te Achei" para devolver a mim o meu pequeno abrigo norturno? Nunca saberei, mas esse foi um momento especial, em que mais perto cheguei de um: Eu Te .... será que acharei eu um dia a palavra mágica e única que completa esta frase?

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